Segundo a lenda, durante o reinado de D. Manuel, não existindo em Santarém uma Torre de Relógio, foi pedido ao rei que providenciasse no sentido de que fosse contraída uma na vila, dado ser tão necessária à população.
Lenda da Torre das Cabaças
Ao rei pareceu-lhe justa a petição e uma verba foi doada à edilidade para que procedesse à construção da Torre, tendo sido designados como “administradores” da obra 8 vereadores.
A obra fez-se e, logo que concluída, convidou-se o rei a vir admirá-la… `A vista da construção, o rei mostrou-se particularmente desagradado com o resultado e considerou mesmo haverem sido malbaratados os dinheiros públicos. Assim, no topo da Torre, na armação férrea onde está suspenso o sino, o rei mandou colocar 8 cabaças que simbolizam as 8 cabeças ocas dos responsáveis pela edificação…
Lenda de S. Frei Gil de Santarém
FFrei Gil terá nascido em Vouzela e, levado pelo seu amor da Ciência às Escolas de Lutécia, segundo a lenda, terá sido desviado pelo mafarrico até às covas de Toledo e aí, mediante pergaminho subscrito com o próprio sangue, lhe vendeu a alma a troco de riquezas e poder.
Levando existência desgovernada, ou seja, diabólica, em Paris, sofreu um violento rebate de consciência que o intimou a mudar de vida, acabando por professar na Ordem de S. Domingos, em Santarém.
De tal forma a virtude o exalta que a Virgem, atendendo às suas orações e súplicas, intercede a seu favor, logrando o desventurado Frei Gil recuperar o nefando contrato.
Certa manhã, à hora da missa, cai-lhe sobre o altar o pergaminho inflamado, enquanto os diabinhos que o atenazavam fogem do bom do santo, marinhando pela corda do sino.
Lenda dos Meninos de Alfange
Deu-se o caso por volta de 1277 e teve o testemunho de Frei Bernardo de Morlans, um filho da melhor nobreza da Gasconha, que para aqui veio pela mão de S. Frei Gil.
Tal fama granjeou que as famílias mais nobres da vila lhe confiaram seus filhos, não só para o ensino das primeiras letras, como ainda para a sua mais cuidada formação moral.
Dois destes meninos, que eram irmãos, assistiam-lhe continuamente como seus discípulos, dizendo a tradição que ambos andavam vestidos com o hábito de S. Domingos, por devoção de seus pais e depois de ajudar à missa iam para a capela da Senhora do Rosário em que estava o famoso Menino Jesus dos Milagres. Ali se sentavam e estendiam a merenda. Até que um deles se lembrou de levantar os olhos para a imagem e de perguntar ao celeste bambino se queria merendar com eles. Acontece que o Menino, descendo dos braços da Virgem Mãe, aceitou o, convite e fez-se hóspede e companheiro dos meninos.
Daqui a contarem o milagre às senhoras suas mães não foi mais que um passo, pedindo os educandos que lhes acrescentassem as merendas, tanto mais que tinham para eles um convidado de categoria… Era de esperar que a acolhida materna fosse um tanto cética, senão suspeitosa de lambareira intenção, qual seria a de haver gula e ludíbrio a mais na requesta.
Daí se abrirem os pasmados fedelhos com seu mestre Frei Bernardo, a quem deram conta do sucedido. Também este não queria crer no que ouvia, até que, persuadido pelas emocionais narrativas e concludentes circunstâncias e queixando-se os petizes de que o seu divino conviva se não lembrasse de retribuir, nem de os convidar, teve a sagaz lembrança de lhes insinuar que, tornando o Menino a ser seu hóspede, lhe segredassem que bem gostariam eles e seu mestre de cear, um dia, em casa de seu Pai.
Numa segunda-feira, antes da Ascensão, se deu o lance para o qual os pequenos se muniram de toda a coragem e audácia.
Mal o celeste bambino desceu do regaço materno e meteu o lábio nos saborosos queijinhos de ovelha, cuja nevada polpa não fazia mancha na brancura do linho da toalha, estendida no supedâneo do altar, logo eles a inquirirem se os queijinhos do Céu não seriam, por acaso, melhores…
A deixa era de aproveitar. E daí a debitarem o sermão encomendado por Frei Bernardo não foi mais, por certo, que duas sôfregas dentadas.
Não mostrou Jesus surpresa pelo desplante dos garotos. Antes prometeu que daí a três dias lhes havia de dar um solene banquete em casa de seu Pai.
Suponha-se a confusão de Frei Bernardo, ao receber a notícia da boca dos seus rapazes, quando estes, num alvoroço sem limites lhe deram conta do recado. O nobre gascão, agora humilde sacristão dos dominicanos, visionava qual seria o banquete e tratou de se habilitar também ao convite. Sacando dos argumentos da escolástica e recorrendo aos silogismos da pragmática, lá foi dizendo aos discípulos que tornassem ao miraculoso altar e dissessem ao Menino que, trazendo eles o hábito de S. Domingos, não podiam deixar de observar as regras da Ordem. Ora não indo os noviços a parte alguma sem a companhia do Mestre, logo, Frei Bernardo tinha de provar também da celestial lambarice…
Sorriu-se o Menino Deus da lógica dos suplicantes e da santa manha do mestre, inspirador da diligência. Logo lhes respondeu que à mesa de seu Pai havia sempre lugar para mais um e que se desse também por convidado o santo varão.
Não coube em si de contente, rejubilando com o aprazimento divino. Feita barrela geral das suas culpas, outro tanto cuidou da alminha inocente dos discípulos, prevendo o que lhe iria acontecer, para além da vida terrena.
Quinta-feira de Ascensão, eis a postos os três da santa conjura. Acabado o ofício da missa conventual, enquanto a comunidade se dirigia para o refeitório, abre-se Frei Bernardo com os pequenos, e segreda-lhes a fatal intenção do convite de Jesus. Em face das portas da Eternidade que se lhes estão abrindo, anima-os, conforta-os para que eles não fraquejem no transe final. E posta a maior diligência em tudo, reveste-se o frade dos paramentos e oficia no mesmo altar das merendas, dizendo missa, com estes a servir de acólitos e dando-lhes, por fim, a comunhão.
Entre eles ficou, de joelhos, todos três de mãos erguidas, olhos postos no Menino. E ali esperaram a feliz hora – esses que haviam de ser chamados às bodas eternas e logo renderam suas ditosas almas ao Senhor que consigo os levou a casa de seu Eterno Pai, a gostarem por toda a eternidade do imortal banquete para que foram convidados.
Assim os encontrou a comunidade quando veio dar graças, os corpos direitos, de joelhos, com as mãos levantadas, e os olhos postos no Céu, que pareciam estar mostrando o lugar para onde as suas almas gloriosamente tinham voado. Seus corpos de tal sorte ficaram que não pareciam desanimados, mas que estavam em êxtase de elevada contemplação. Estranhando a prolongada oração, chegara-se aos imobilizados corpos e, ficando atónitos, descobriram que a alma se lhes tinha ido para sempre.
Lenda da Pastorinha
Nos últimos anos do séc. XIII, reinando D. Dinis, havia uma gentil pastora que costumava ir apascentar o seu gado para terras de Mont’Irás, perto do local onde já então se erguia a capela dos Doze Apóstolos. Sucedeu que um cavaleiro de tronco nobre começou a perseguir a donzela e a incitá-la ao pecado, ao que ela fortemente se escusou com a jura de manter a virgindade intacta até ao dia em que, perante o altar, celebrasse a sua boda.
Mas tão insistentes se fizeram os rogos do ardente moço que a tenacidade da moça começou a afrouxar, uma vez que, no fundo do seu coração, já estava presa de afeto pelo galanteador. E um dia em que a sua vontade se mostrava mais débil para manter a recusa, veio-lhe à mente propor ao cavaleiro que este, em frente da imagem do Cristo dos Apóstolos, fizesse a solene jura de que a desposaria em breve, ao que ele acedeu, jurando, na pequena capela, que a tomaria como esposa. Feito o juramento, a pastorinha entregou-se ao seu apaixonado e juntos conheceram a força do mútuo afeto que os ligava.
Em breve o sedutor, possuído do fruto da paixão, esquecia a promessa jurada e o pecado em que incorrera com a que reputara de noiva. E sucedeu que o fruto dessa união se começou a desenhar, ficando a pastora comprometida aos olhos da família e das gentes do burgo, assim pejada e sem poder divulgar a origem da sua desgraça; os seus rogos insistentes, para que o cavaleiro tomasse a culpa da falta, eram por este negados, afirmando que nem sequer conhecia a pastora que dizia trazer nas entranhas um fruto do seu amor. Como tudo se passara entre os dois, difícil se tornava à pobre acusada provar a origem do delito e a sua inocência. Assim a pastora chegava ao termo da gravidez, ferida na sua honra de mulher e com a reputação manchada.
Lembrou-se a pastorinha de solicitar dos juízes do burgo que, em presença da imagem do Cristo dos Apóstolos, o sedutor tivesse o ânimo de negar as relações que com ela mantivera. Reuniram-se na capela de S. Bento os juízes, a acusada e o sedutor, perante muita gente da terra e aí uma cena milagrosa se teria passado: quando a pastora, em choro confrangedor e fitando com devoção a imagem, inquiriu em voz alta se era ou não verdade que, no mesmo local, o cavaleiro lhe jurara amor eterno e a realização de um próximo consórcio, eis que o Cristo de Mont’Irás levantou o braço direito da cruz em que estava pregado, e em sinal de assentimento o deixou cair. Pasmam os presentes com o sucesso miraculoso, bendizem todos a imagem que assim dava testemunho da verdade, e ali mesmo o arrependido moço proclama as suas faltas passadas e jura a sua união com a pobre pastorinha.
Lenda do Homem das Botas
Em Outubro de 1810, aquando das invasões francesas, a fim de evitar a profanação do SS. Milagre, a âmbula em que se encontrava guardada a sagrada partícula foi levada, à cautela, para Lisboa.
Passado o perigo, o povo de Santarém reclamou o regresso do Santo Milagre, que os lisboetas teimavam em recusar e ameaçavam mesmo impedir.
Temia-se, assim, alvoroço no povo no dia aprazado (2 de Dezembro de 1811) para o regresso da sagrada partícula. Alguém teve então a ideia de anunciar e divulgar, através de cartazes, que, no mesmo dia, um homem atravessaria o rio Tejo, de Lisboa a Almada, calçado com umas botas de cortiça que o fariam flutuar. Aí esperaram todo o dia o surgir do homem das botas…
Entretanto, o Santo-Milagre, sorrateiramente, era embarcado rio acima, rumo a Santarém. Em Lisboa ninguém o viu sair e só dele tiveram novas quando constou da sua chegada a Santarém e dos grandes festejos com que os saudosos devotos ribatejanos o receberam.
Lenda do Santíssimo Milagre
Numa ruela junto ao antigo – hoje já demolido – Postigo de Santo Estêvão, vivia uma pesarosa mulher que não se conformava com a infidelidade conjugal do seu marido. Desejosa de reaver o afecto do consorte, procurou ela uma sua comadre, judia de raça, muito dada ao magicismo e à bruxaria, para que esta lhe ensinasse a maneira de voltar a sentir a felicidade. Nas suas artes mágicas ordenou-lhe a comadre que fosse à igreja próxima e que aí, simulando comungar, trouxesse para casa a sagrada hóstia, embrulhada na beatilha.
Assim procedeu e, realizado o sacrilégio, reparou a mulher que, poucos passos tinha andado, e já da beatilha saía jorrante fio de luz que não passara despercebido das gentes que a tinham cruzado. Vendo o seu acto quase do conhecimento público, impacienta-se a pobre e, chegando a casa, fecha a roubada hóstia numa arca, para que o marido não viesse a suspeitar do roubo que ela cometera. Noite alta acordam marido e mulher. Toda a casa estava iluminada por uma estranha claridade e um aroma suavíssimo, impregnado de balsâmico perfume, enchia todo o ambiente. Não podendo por mais tempo ocultar o seu furto, a mulher, arrependida e banhada em lágrimas, conta ao marido a verdade. Este, sem perda de tempo, vai à casa do pároco para desabafar as miraculosas consequências do furto da sagrada hóstia. Com a apoteose do povo volta então a hóstia para a igrejinha de Santo Estêvão, em solene procissão.
A tradição mantém que o milagre se deu numa pequena casa da Travessa das Esteiras – casa que foi transformada em capela no século XVII. Sete séculos são decorridos e, entretanto, a preciosa relíquia, guardada em âmbula de cristal, continua a ser alvo de peregrinação e veneração por parte de crentes nacionais e estrangeiros.
Lenda de Santa Iria
Iria nasceu em Nabância, cidade que se crê ter existido próximo de Tomar. Seus pais eram nobres e, da educação que recebeu, nasceu-lhe o desejo de servir Cristo; assim, logo que atingiu idade suficiente, entrou para um mosteiro governado por um seu tio, o abade Célio. No convento completou a sua educação através de Remígio, um douto monge.
Nessa época era senhor de Nabância o príncipe Castinaldo, o qual tinha um filho de nome Britaldo, cavaleiro corajoso, bom e leal.
A jovem Iria era lindíssima e, uma vez em que atravessava Nabância em procissão com as outras monjas, foi vista por Britaldo que, encantado pela sua formosura, se apaixonou imediatamente. E de tal forma que perdeu o apetite, o sono, a alegria e quase enlouqueceu. Acabou por cair doente e nem o físico nem o boticário conseguiram achar remédio apropriado para curar aquele estranho mal.
Em sonhos, Deus apareceu a Iria e contou-lhe a desgraçada doença do jovem Britaldo, revelando-lhe ser ela a causadora da enfermidade. Ao acordar, a monja decidiu ir visitar o infeliz ao palácio e tentar dissuadi-lo daquele amor. Assim, depois de rezar as matinas à beira do rio Nabão, como era seu costume, a monja dirigiu-se a casa de Castinaldo a pedir permissão para visitar Britaldo.
Pousando docemente a sua mão na testa escaldante do enfermo, Iria tentou dissuadi-lo do sentimento que lhe havia inspirado, já que ela se prometera a Deus e jamais faltaria à promessa feita. O cavaleiro fê-la, então, prometer que nunca daria a outro o amor que a ele negava. Iria prometeu e, fazendo-lhe o sinal da cruz na testa, esperou que Britaldo adormecesse e saiu de mansinho, deixando o cavaleiro de novo cheio de saúde.
Passou-se o tempo e, dois anos depois, veio a apaixonar-se por Iria o velho preceptor, Remígio. A monja repeliu-o, primeiro docemente, mas por fim, dada a sua insistência, foi obrigada a usar de áspera severidade. Ferido nos seus desejos, Remígio jurou a si mesmo vingar-se da virgem que assim desprezava os seus favores.
Muito dado às experiências alquímicas, Remígio, preparou no seu laboratório uma beberagem que, na manhã seguinte, conseguiu que Iria bebesse misturada na sopa do almoço. Algum tempo depois começou a sentir-se vingado: Iria engrossava como se grávida estivesse.
Segura de si, a virgem, não atinando com a causa do que lhe acontecia, continuou fazendo a mesma vida rotineira do mosteiro. Redobrou, porém, as orações e os cilícios, tentando desse modo provocar uma explicação de Deus para o fenómeno. Mas Britaldo, vendo apenas os efeitos exteriores da poção mágica, sentiu-se traído e decidiu matar Iria.
Incumbiu então um soldado de acabar com a monja, e, conhecendo o seu hábito de rezar matinas à beira do Nabão, mandou o homem esperá-la no local onde de costume se recolhia em oração. Ali a encontrou, pois, o soldado na madrugada de 20 de Outubro de 653. Ali a degolou com uma espada, atirando em seguida o cadáver ao rio.
Na manhã seguinte, Iria não apareceu e, imediatamente, começou a correr a notícia de que fugira com Britaldo. Mas Deus é grande e, por isso, revelou a Célio a verdade do acontecimento. Este, por sua vez, mandou reunir o povo na igreja e contou-lhe toda a verdade. Inflamado pelas palavras do abade, o povo, juntamente com monjas e monges, iniciou a busca do corpo de mártir.
Começaram primeiro buscando no Nabão, depois passaram ao Zêzere e, por fim, procuraram no Tejo. Estavam quase a desistir das buscas quando, perto de Scallabis, se lhes deparou um sepulcro de mármore branco onde milagrosamente estava encerrado o corpo incólume de Iria. Quiseram retirá-lo, mas as águas, que tinham baixado de repente para mostrar o túmulo, voltaram a subir, cobrindo para sempre o sepulcro da mártir.
A tradição medieval acrescenta que, desejando a Rainha Santa venerar o túmulo de Santa Iria, as águas do Tejo tornaram a retirar-se milagrosamente para que lhe fosse possível orar sobre a laje de mármore. Em agradecimento a Deus e à Santa, D. Isabel mandou erigir, ao lado do túmulo, um padrão que assinalasse para sempre o local. Ainda hoje, sucessivamente restaurado, aí se encontra essa marca.
Lenda de Santarém
Segundo conta a lenda, em 1215 a.C., reinava sobre a próspera Lusitânia um príncipe chamado Gergoris ou Gorgoris. Chamavam a este homem “O Melícola”, porque ensinara os seus a extrair o mel dos favos das abelhas.
Certo dia, Ulisses da Ítaca, que vagabundeava pelos mares na sua penosa Odisseia de uma década, chegou à foz do Tejo com alguns navios. Achando a amenidade e o encanto do país ideais para o seu descanso, decidiu fixar-se na região, a fim de recuperar as forças perdidas e aguardar a melhor ocasião de tornar à Grécia.
Hóspede de Gorgoris, Ulisses, como visitante de honra, tinha permissão de vaguear por onde fosse seu desejo. Deste modo, acabou conhecendo a bela Calipso, filha única do seu hospedeiro. E do longo e descuidado convívio dos dois jovens foi nascendo a paixão. Segundo conta a lenda, destes amores com Ulisses teve Calipso um menino, ao qual chamou Abidis.
Gorgoris, mal soube do caso, ficou furioso e procurou Ulisses para o castigar. Este, porém, avisado da sua fúria, juntara à pressa os companheiros e zarpara rápido, rumo a Ítaca.
Entretanto, o príncipe lusitano, incapacitado de exercer o seu legítimo desejo de vingança, querendo apagar os traços da passagem do grego e para que não ficasse memória do acto impensado de Calipso, mandou que encerrassem a criança num cesto e a lançassem ao Tejo. O rio encarregar-se-ia de destruir aquele vestígio dos amores de sua filha e a justiça far-se-ia!
A maré subia na hora em que o cesto foi deixado sobre as águas e, em vez de a criança ser atirada para a foz pela corrente, foi empurrada rio acima até encalhar numas brenhas, perto da gruta que servia de covil a uma cerva, ou, segundo outras versões, a uma loba. O animal, ouvindo o choro da criança, acercou-se do cesto, farejou e, vendo que era apenas uma cria esfomeada, amamentou-a e criou-a.
O menino foi crescendo até que se fez homem. Alimentava-se de frutos silvestres e de peixe do rio e, à noite, quando lhe chegava o sono, alapava-se em qualquer gruta juntamente com a fera que a habitasse, porque de todas era familiar. Durante o dia corria pelas brenhas, tomava banho no rio e brincava com os animais selvagens, aprendendo a viver naqueles ermos.
Certa manhã, caçadores lusitanos embrenharam-se mais nos silvados da margem do Tejo e, de súbito, viram aquele rapaz saltando valados como se fora um veado. Acharam estranho o espectáculo insólito daquele homem vivendo só por ali e, cheios de curiosidade, decidiram tentar capturá-lo. Armaram-lhe uma cilada com redes e esperaram calmamente a sua passagem. Desprevenido, Ábidis acabou por ser capturado, apesar da resistência feroz que opôs aos caçadores, e levado à presença de uma mulher: Calipso, sua mãe.
Esta, depois do primeiro espanto, observou atentamente o homem selvagem que lhe traziam e acabou por descobrir, por uma cicatriz que lhe ficara de nascença, que aquele era o seu filho abandonado. Hesitou a princesa no que fazer, recordando a fúria de Gorgoris há vinte anos atrás.
A notícia, porém, chegou ao velho “Melícola” antes que Calipso decidisse o que fazer, pois os próprios caçadores se encarregaram de a espalhar pela Lusitânia. Mas haviam passado vinte longos anos sobre aquele dia em que Gorgoris mandara deitar a criança ao rio. Velho de setenta anos e sem herdeiro varão, o príncipe ponderou no que fazer do rapaz e acabou por se decidir a educá-lo como seu sucessor.
Segundo conta a lenda, em boa hora “O Melícola” educou Ábidis, porque por sua morte o jovem foi rei dos Lusitanos e ficou nos anais do seu povo como rei justo, sábio e humano. E não esquecendo os acontecimentos ligados ao seu nascimento, decidiu construir naquele local inculto e silvestre uma cidade que lembrasse para sempre os seus primeiros vinte anos de vida. E à bela povoação que mandou construir chamou Esca-Abidis, que significa manjar do príncipe Ábidis.